Cearenses sentem orgulho de terem lutado com comunistas

Doutor Gonçalo: "chegamos a praticar exercícios militares"
Entre os sobreviventes dos focos de resistência da Diocese de Crateús, está José Gonçalo, conhecido por doutor Gonçalo. Ele é semi-alfabetizado e o nome de doutor provém do fato da grande inteligência prática, para consertos de produtos eletrônicos, conhecimentos adquiridos como autodidata.
Doutor Gonçalo foi um dos recrutados por Eloísio e ainda hoje se mantém na luta pela consolidação do PCdoB na região e se diz materialista. Curiosamente, quem o recrutou, Eloísio, passou a acreditar e tomar decisões individualistas. No reencontro, Eloísio já não pôde mais convencer o antigo camponês sobre o que seria melhor para ele.
Doutor Gonçalo fala do passado com orgulho e com a consciência de que fez o melhor para si e para o coletivo. Naquela época, o PCdoB contava com um comitê na Região de Crateús, embora clandestino. Os contatos de recrutamento em Novo Oriente aconteciam através de ativistas de Fortaleza, principalmente com o movimento estudantil. Os mais estreitos laços eram com Lúcio, chamado de Júlio, professor Oliveira e, principalmente, o Eloísio (Pedro) e com o Vladimir Pomar (Zé Alves).
“Houve um momento que acreditamos que a saída era a luta armada. Chegamos a praticar exercícios militares. Por sinal, pouco tempo depois, formou-se a guerrilha de Conceição do Araguaia. Foi um período em que o partido praticamente desapareceu aqui de Novo Oriente”, lembra doutor Gonçalo.
Um dos principais pontos de resistência, conforme lembra doutor Gonçalo, foi a construção de túnel em Dois Irmãos, distrito de Novo Oriente, na subida da terra, que deveria ser utilizado com esconderijo de armas, alimentos, água e até mesmo de militantes, diante de uma perseguição intensiva da repressão militar.
Conforme lembra, havia uma crença forte de que a revolução poderia acontecer, de forma conseqüente, se fosse do campo para a cidade. No entanto, reconhece que houve precipitação. “A gente acreditava porque não via uma outra saída. O Partido também agia com esse pensamento. Da forma que a gente é educado é a forma que se coloca em ação”, diz.
Durante a perseguição política, o que lembra como o mais grave foi a prisão do padre Geraldinho, uma ação traumática, que fez todas as pessoas do grupo a passarem dias na clandestinidade e a temer pela própria vida. “Depois disso, houve a prisão de um cunhado meu, torturado com o choque e nós escapamos nos escondendo. Nós estávamos preparados para morrer ou matar“, diz.
Doutor Gonçalo conheceu o partido, depois que os estudantes de Fortaleza chegaram a Crateús, com o ideal de se iniciarem na luta armada. Ele admite que de todos os focos, o mais organizado aconteceu em Novo Oriente.
O sucesso das ações, conforme observa, foi resultado muito mais das normas de segurança, em que até mesmo dom Fragoso, desconhecia o que se realmente discutia e se fazia naquele município. “Nós trabalhávamos com muita segurança e a Igreja não sabia quem era do partido. Isso também decorria do fato de que estávamos misturados com o povo, éramos do povo”, avalia.
Doutor Gonçalo diz, no entanto, que dom Fragoso contribuiu fortemente com o PCdoB e o seu ideário, mesmo de forma indireta, uma vez que sua formação e disseminação da região teve grande influência da Igreja.
Latifúndio escondia guerrilheiros
Quem viveu na clandestinidade em Crateús tem, de algum modo, uma dívida com a família de José Ferreira, falecido em 1997, um fazendeiro que abrigava militantes procurados pela repressão militar e apoiava membros das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs). Um homem rico, latifundiários, com mais de 1000 hectares de terra, rompido com comerciantes, fazendeiros e as oligarquias políticas tradicionais.
O pai, José Ferreira, era um dos fazendeiros que davam apoio aos guerrilheiros escondidos na serra. Havia a própria irmã, Alzira, envolvida diretamente com ações revolucionárias na célula de Novo Oriente e São Miguel do Tapuio, Augustinha, que atuava na retaguarda, atuando nos contatos entre a Igreja e as lideranças camponesas e mais um irmão, Roseno, preso no Congresso da UNE, em Ibiúna, São Paulo.

Judite levava as correspondências
De certo modo, toda a família de Judite Maria Melo Correia Lima estava comprometida com a resistência mantida a partir da Diocese de Crateús. O seu papel não era o menos importante. A participação não se restringia a logística. “Muitas vezes, era eu quem ia aos médicos. Dizia ao doutor os sintomas de uma das pessoas do grupo e, conforme a prescrição médica, repassava, os medicamentos para as pessoas doentes”, lembra. Os subterfúgios, como salienta, eram mais do que necessários porque a exposição pública dos clandestinos poderia resultar em prisões e no desmantelamento dos aparelhos.
Judite, hoje com 64 anos, vive com a mãe Maria, com 90 anos, que diz nunca ter sabido realmente quais as participações políticas da família, porque o marido José Ferreira, a poupava. No entanto, não deixava de intuir e também de colaborar com os refugiados na fazenda Tourão.
No reencontro com Eloísio, Judite relembra os tempos em atuava como “pombo correio”. Cabia a ela levar correspondência para os “subversivos”. Sua ação incluía trajetos de Fortaleza, ou onde residiam os familiares de homens e mulheres foragidos, a Crateús. Um dos artifícios que recorria para confundir as blitze policiais era levar cartas dentro de uma garrafa térmica. Primeiro retirava o tubo térmico e acondicionava as correspondência. Em seguida, voltava a repor o tubo adequadamente.
Uma outra função era ouvir e transcrever os noticiários das rádios BBC, Londres, e Tirana, da Albânia, que falava sobre a efervecência política do Brasil e não divulgada nos veículos de comunicação nacionais. Muitas dessas informações foram utilizadas em jornais e folhetos apócrifos que circulavam por toda a Região do Crateús.
Um desses documentos dava conta das operações militares no Araguaia, nos tempos em que a imprensa limitava-se a informar que o Exército agia contra contrabandistas acoitados no Sul do Pará.
Os folhetos, no entanto, ousavam falar a verdade. “Notícias provindas de diversas fontes, entre as quais pessoas chegadas do Norte, dão conta de que se verificam graves conflitos naquela região. Várias cidades às margens dos rios Araguaia e Tocantins acham-se sob controle das Forças Armadas. Moradores locais têm sido presos e submetidos a vexames e maus tratos. A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) denunciou que, na Vila de Palestina, município de São João do Araguaia, o padre Roberto e a irmã Maria das Graças foram seviciados barbaramente por militares, sob o pretexto de que tinham semelhanças fisionômicas com elementos cabeças de grupos guerrilheiros”, dizia um desses folhetos, ainda hoje guardados pela família de José Ferreira.
Judite diz que toda a família sofreu pelo socorro e até adesão aos movimentos políticos de oposição ao regime. No entanto, não tem nenhum arrependimento. Para ela, havia no passado muito mais compromisso das esquerdas do que atualmente.
“Naquela época, éramos muitos comprometidos e não tínhamos medo. Estávamos muito seguros do que queríamos fazer. Foi a própria repressão que nos ensinou a termos uma unidade, pois tínhamos que nos defender. Havia também muita discussão e muita visão. Ou seja, o que acontecia em Tirana, nós nos informávamos e tirávamos lições para a nossa luta”, diz.
Padre critica postura da Igreja
O padre Geraldo Pinheiro Peixoto, ex-pároco de Novo Oriente, conhecido por padre Geraldinho, era o homem de ligação entre a Igreja Católica e os movimentos organizados de camponeses, com infiltrações do PCdoB. Ele foi preso, torturado e hoje está afastado das funções de pároco de Nova Russas. Ele diz que nem mesmo a ditadura lhe fez maior mal do que a Igreja Católica. “Minha vocação sempre foi ser padre. Ser afastado e caluniado pelos meus companheiros do clero foi muito pior do que me fez a ditadura”, reclama.
Hoje, padre Geraldo é diretor do Museu Municipal de Nova Russas e se diz um homem com a fé abalada, principalmente no tocante à piedade. No entanto, não deixa de se dedicar aos estudos, publicar livros e afirma que não interrompeu sua luta contra o capitalismo.
Para ele, foi terrível para o mundo o fim da União Soviética. Com ela, acredita que não haveria a invasão do Iraque, como exemplo. Abaixo, trechos do seu depoimento pessoal sobre a prisão e tortura pela Polícia Federal, em Natal. “Eu era vigário de Novo Oriente. Recebi uma comunicação , a pedido do padre Moacir, vigário de Aratuba, da Arquidiocese de Fortaleza, para substituí-lo em um encontro das CEBs, em Recife. Mesmo com compromissos de festas religiosas, no interior da paróquia, aceitei participar do evento, sobretudo, como solidariedade a um colega a quem muito estimava. Viajei a Recife na lembrança e compromisso de logo retorna a Crateús participar do Retiro do Clero que já se avizinhava,” conta.
No relato de padre Geraldinho, foram três dias de encontro, em Recife. No último dia, teve que se despedir dos participantes a fim de viajar para Crateús. Como o tempo era exíguo teve que tomar um avião no trecho Natal-Fortaleza. De Recife a Natal, viajou de ônibus. Chegando a Natal à noite, teve que procurar o aeroporto, pois a viagem de ônibus a Fortaleza, levaria muito tempo, o que o impediria de chegar a tempo para o Retiro do Clero.
“Quando cheguei à agência de passagens aéreas, senti falta de minha carteira de identidade. Só depois, já preso, descobri que minha identidade havia sido roubada de minha bolsa, no quarto de hospedagem, no encontro de Recife. É que havia um espião, a serviço da ditadura, infiltrado naquele evento. E mais ao sair, recebi um pacote, tipo jornais, para ser entregue a um padre francês, residente no Seminário da Prainha”, relembra.
Chegando ao aeroporto, apresentou-se ao balcão para o embarque. Veio então um agente da Polícia Federal e retirou de sua bagagem os jornais que tinham o título de “Círculo”. Foi dada, então, ordem de prisão. “Não me torturaram fisicamente, é verdade, mas, sim, psicologicamente. Depois tentaram denegrir minha imagem, afirmando que eu acusara pessoas. Por tanto, os danos morais causados à minha pessoa aniquilariam toda e qualquer pessoa ao ser apresentado pela ditadura, como “Pombo Correio” e delator. Isso não tem dinheiro que pague”, assevera padre Geraldinho.
Fonte: jornal Diário do Nordeste, do Ceará
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